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Uma IES pode ser uma corporação e ter lucro?

                                                                          Fábio Reis

C. Raj Kumar, Vice Chancellor of O.P. Jindal Global University,   publicou o artigo “University is not suppost to be a profit-driven coorporation”, no The Indian Express. Kumar  crítica as instituições com foco no lucro. Será que de fato as IES não podem ser uma empresa com fins lucrativos? No Brasil, desde 1997, é permitido que as IES sejam organizações com fins lucrativos. No Brasil, há empresas de educação listadas na bolsa de valores.

Será que o Brasil é uma anomalia, em que o mercado do ensino superior se consolidou e os seus interesses prevaleceram? Antes de tudo, é preciso algumas considerações. A Constituição de 1988 define o ensino como livre à iniciativa privada, desde que atenda às normas de autorização e avaliação da qualidade. A LDB, em 1996, reafirma a legitimidade das instituições privadas.

O Decreto 2.306, de 1997, impulsionou o avanço das IES privadas no ensino superior, quando definiu que as mantenedoras poderiam assumir sua natureza civil ou comercial. O mesmo decreto prevê a existência de IES com fins lucrativos.

Pela legislação, as mantenedoras das IES podem ter fins lucrativos. Não há anomalias em termos legais. Raj Kumar defende que a IES não pode ter fins lucrativos e que não pode ser  uma corporação empresarial. Sou um defensor da concepção de que uma IES precisa ser organizada como uma corporação complexa e entendo que há polêmicas sobre a finalidade lucrativa da IES. Vou tratar a concepção de corporação como uma organização com finalidades específicas, que precisa de governança, planejamento, eficiência e resultados. Entendo que uma IES pode ser uma corporação, com gestão empresarial.

Para Raj Kumar, as corporações educacionais baseiam-se no lucro e no retorno do investimento, o que ele considera como legítimo. Por outro lado, uma IES, segundo ele, fundamenta-se nos princípios do bem comum, na oferta da educação, como elemento essencial para o bem-estar social, na formação para a cidadania, no conhecimento, nos fundamentos do ensino e na aprendizagem, na inclusão e nos serviços para a sociedade.

Kamur enxerga que é incompatível o desejo do lucro, o foco nas margens de EBTIDA e os elementos comerciais, com os fundamentos de uma instituição de educação, que possui valores e resultados intangíveis. Kumar argumenta que “as corporações medem a sustentabilidade em termos de lucro, o que requer maximizar receitas e minimizar custos”.

As argumentações de Kumar tem lógica e exigem reflexão. Pretendo tecer algumas considerações sobre a IES como corporação e sobre a ideia do lucro no ensino superior, criticada por Kamur.    

Uma IES é uma organização complexa, que possui diferentes áreas administrativas e acadêmicas, que precisam de gestão, planejamento com objetivos, metas e avaliações contínuas. A IES, funcionando sem os princípios da administração, perde eficiência, pode fragmentar-se em grupos de interesses corporativos e ações dispersas. A IES precisa de pessoas preparadas para exercer a governança e a gestão.

Philip Altbach defende que as “universities are complex organization and require profissional management and administration – in many ways similar to any large organization”. Altach defente que uma IES requer pessoal qualificado, inclusive para a gestão financeira. Não tenho dúvida, uma IES precisa de gestão similar a uma corporação, com resultados acadêmicos, administrativos e financeiros. 

Em relação à finalidade de lucros da IES, entendo que a educação é um bem social. Não podemos negar que a educação é de interesse público, pelo seu impacto social, pelos benefícios que proporciona aos cidadãos e ao desenvolvimento do país. Por outro lado, não dá para aceitar discursos de defesa da estatização ou do controle do Estado sobre a iniciativa privada. 

A educação tem uma função social e é livre à iniciativa privada, que por sua vez, cumpre a legislação que regula o seu funcionamento. Através da educação, os cidadãos podem assegurar o funcionamento do Estado de direito, da democracia e o desenvolvimento do país.  A iniciativa privada tem um papel essencial no Brasil, ao contribuir com a realização dos elementos indicados acima e tem um papel estratégico na ampliação do acesso. A iniciativa privada representa 75% das matrículas. O Estado não tem recursos financeiros e articulação administrativa para realizar a expansão do sistema e cumprir o Plano Nacional de Educação (2014-2024), que prevê uma taxa de escolarização líquida de 33%. Hoje temos 18%.

A finalidade lucrativa da IES é legítima, definida em lei. Hoje, o conceito de Environmental, Social and Governance avança no ensino superior. Há IES com fins lucrativos que estão em processos de incorporação dos princípios do ESG, por outro lado, são IES que geram empregos, pagam impostos e representam um importante setor da economia.  Se a corporação de educação  priorizar exclusivamente o EBTIDA em detrimento à qualidade da educação, não cumprirá o seu papel social. Confio nas IES que celebram e priorizam os bons resultados acadêmicos. O resultado do EBTIDA pode ser consequência do compromisso com a educação.  

É preciso chamar atenção para um aspecto: ter bons resultados na avaliação no MEC não significa que uma IES é melhor que a outra. É preciso ampliar e rever os indicadores de qualidade do MEC. Uma IES que ousa, que inova, que é empreendedora, que presta bons serviços para a sociedade, necessariamente não é a instituição que obtém nota máxima nas diferentes avaliações oficiais. Tenho dúvidas de se exames, como o ENADE que se tornou extremamente relevante em nosso sistema, são capazes de detectarem a qualidade, em uma perspectiva ampla, de uma IES.    

O lucro deve ser o resultado da qualidade da gestão corporativa, da inovação, da cooperação com outras IES para diminuir custos ou com outros fatores e não o contrário, como resultado da diminuição da qualidade, articulada pelos gestores de uma IES. A eficiência da gestão aliada a investimentos acadêmicos, podem sim, gerar lucro. 

Há países como o México e o Chile que impedem a existência de universidades com fins de lucro, mas sabemos que há famílias que controlam as IES privadas desses países. Elas buscam alternativas para o lucro permanecer com a família ou com a empresa gestora da IES, controlada pelos seus membros. No Brasil, famílias que possuem IES sem fins lucrativos, precisam reinvestir os resultados financeiros 100% na instituição. A lei que permite o lucro na IES tornou mais transparente a gestão do patrimônio das IES familiares.

O fato é: ter lucro sem compromisso com o valor da educação, sem compromisso social, sem compromisso com os princípios do ESG, sem compromisso com a formação de um egresso capaz de responder aos desafios da sociedade pode ser encarado como uma anomalia no sistema. Uma IES não deveria prejudicar de forma consciente e pragmática a qualidade da formação dos estudantes, para favorecer o lucro. Espero que o MEC refaça seus critérios de qualidade e que a sociedade possa identificar as IES sem  comprometimento real com a educação.

O problema não e o fato de uma IES XYX ter lucro, mas sim, não atuar em favor da boa formação de seus alunos. Uma IES alicerçada prioritariamente pelos resultados de uma planilha financeira deixará de ser uma instituição de educação. 

Admiro o empreendedorismo das famílias que foram responsáveis pela expansão do sistema de educação privada no Brasil, admiro a vocação para a educação dos mantenedores, mas ao mesmo tempo, defendo que a IES deve cumprir seu papel social e ser  vocacionada aos interesses públicos.               

Discordo de Raj Kumar e ao mesmo tempo respeito seus argumentos, mas acredito que uma IES pode ser uma corporação e ter lucro. As corporações educacionais no Brasil e as IES de modo geral, estão e estarão em constante processo de discernimento social. Em tempos de crise, de acesso à informação e de exigências dos empregadores, quem não apostar na oferta de bons serviços educacionais irá perder competitividade e diminuirá a sua base de estudantes.

Sei que muitos podem me criticar por defender que é possível uma IES ter lucro. Esta é a beleza do debate sadio. Antes de terminar, quero afirmar que as IES públicas são essenciais para o Brasil e que precisam de investimentos. Cabe ao Estado investir prioritariamente na educação pública, sem excluir o setor privado. Os setores públicos e privados são importantes, desde que tenham a educação como prioridade e boa gestão, que sejam eficientes em seus custos e socialmente compromissadas.    

Fábio Reis: Diretor de Inovação e Redes de Cooperação do Semesp, Presidente do Consórcio Sthem Brasil, Secretário Executivo da MetaRed Brasil, Diretor de Inovação Acadêmica da Unicesumar, Consultor de Inovação da Afya Educacional, Professor do Unisal e pesquisador em políticas públicas vinculado ao Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra.